Por Alessandro Caldeira
Nesse acontecido, meu senhor, eu
estava vendo o jogo entre Brasil x México na Copa de 66. Uma boa partida onde o
escrete brasileiro desfilava seu talento, ainda mais quando chegavam de
pertinho Garrincha, Didi e Pelé para ficarem tocando a bola de um lado para o
outro.
Tadinha. Às vezes parecia que a
bichinha ia reclamar a qualquer hora, mas se você quer saber, era possível
escutar o silêncio dela diante das batidas que sofria. Era seu divertimento. A
bola estava gostando de poder, finalmente, exercer a sua função de senhora do
gramado.
Porque, se no jardim de qualquer
senhoria é o jardineiro quem cuida da grama; no campo, não. Aquele objeto
esférico é a responsável por aparar os fios do gramado. Bastava rolá-la de
mansinho.
Ah, mas olha, que penúria, que
ardente angústia quando o juiz apita dizendo que a bola saiu para a lateral,
impedindo que aqueles homens permitissem à bola a continuar capinando seu
quintal.
Eu gritava que aquilo era uma
desonra, ultrajante e desumano e, após o fim da partida, rosnei que não tinha
nada que inventar uma regra dessas. Por que não faz um campo maior, então?
Assim, Garrincha algum teria de parar com as fintas, dribles, a dança de um
verdadeiro samba.
Mas, havia um homenzinho que
cochichou bem no pé do meu ouvido que eu quase me assustei: sabe, meu senhor,
eu sou ao contrário, sempre peço para que a bola saia pelo lado do campo. Não
tem um único dia que eu não rogo para esse objeto voar para a lateral como a um
passarinho desnorteado.
Ora, eu fiquei indignado com aquele
rapaz, como ousa querer assassinar desse modo o futebol? “Escuta, rapaz, eu sou
contra a qualquer tipo de cobrança de lateral. Se fosse eu, pelo menos
aumentaria a largura do campo e não ficaríamos tristes”.
Ah, sim, ficamos muito tristonhos e
melancólicos quando a jogada cessa em lateral. Quando é jogador pé rapado, nem
ligamos muito, é até uma salvação quando acontece tal façanha. Até podemos
clamar: pois que saia ao longo dos noventa minutos, assim não precisamos
acompanhar essa atividade, esse exercício do não-futebol.
Apareceu um outro homem querendo
discutir, dessa vez mais alto e com cara de intelectual: Quanta bobagem é essa
que estou escutando? Como seria possível alargar o campo? Não haveria nem
espaço para a arquibancada, meu senhor.
Mas quem é que tá falando de
arquibancada, meu Deus do céu? Vocês não estão notando as minhas palavras, que
me desculpem os senhores. O que eu estou pedindo é um pouco mais de beleza no
jogo, o lateral vai contra a beleza. Sim, a cobrança de lateral é o velório do
corpo de uma boa jogada.
Mas é você que não entende do que é
feito o jogo, meu senhor, gritou o homem baixo no meu lado direito. Não é
possível que alguém enxergue o futebol retirando a vida que nele se encontra.
Pois o que há de vida nisto tudo,
senão, a beleza, meu senhor? Está se esquecendo do porquê estamos sempre a
assistir futebol. Assistimos para escapar dos nossos empregos, assistimos para
escapar da solidão, assistimos para escapar de nossas mulheres ou futuras
viúvas.
O que o senhor quer mesmo é voar
livre com todo esse seu confessionário ridículo, débil e malogrado. Não é
assistir futebol o seu objetivo.
Então, me diz, meu senhor, o porquê
você defende que o campo não seja alargado e nem que a bola continue rolando?
Pode me dizer?
O homem baixo olhou a todos em volta,
como se tivesse se precavendo de algum crime mortal ou coisa parecida. Depois,
se pôs a olhar para mim e avaliar os meus trajes. Parecia que estava tentando
tomar coragem para confessar a maior das injúrias. Finalmente, se manifestou:
Eu sou o gandula, meu senhor.
Falo assim meio arrastado e um pouco
conservador porque não se deve saber nada sobre o gandula. Todos sabem os nomes
dos jogadores, as histórias que eles viveram, sejam boas ou más.
As histórias dessas instituições,
então, não têm nem o que dizer! Se falam delas por interesse histórico ou
política, quase sempre é política, porque, em sua maioria, nunca há um único
assunto digno para pronunciarmos suas biografias.
Se os Clubes fossem personagens
literários, meu senhor, com certeza arrumariam algum tipo de personagem heroico
do nosso período romântico armando acontecimentos divinos enquanto se esconde a
aflição do suicídio.
Mas, nós, gandulas, não... poderíamos
ser, na literatura, Severinos, iguais àquele poema épico de João Cabral de Melo
Neto. Mas, quem dera, não é, meu senhor? A gente não tem esses privilégios de
sermos lembrados. Nem na morte.
Abaixei a cabeça, sentindo alguma
espécie de náusea, mas queria continuar ouvindo aquele senhor que ainda não se
revelara: qual seu nome, senhor?
Meu nome? Olha, antigamente me
chamavam de Luís, na certidão de nascimento a minha mãe colocou: Luís Oliveira
de Santos, mas no estádio perdi meu provir. Sou chamado de gandula o tempo
todo.
“Mas que horrível deve ser para o
senhor não viver dessa forma!”, exclamei, atônito, com um certo fingimento.
Ah, não, meu senhor. Eu me acostumei.
Não tem ninguém que os jogadores mais conheçam do que os gandulas. Pode
perguntar para qualquer um, eles hão de confirmar. Afinal, sou eu quem leva a
única possibilidade de vitória que eles têm, não é mesmo?
Mas o meu desejo que a bola saia para
outro lugar se trata de outro motivo. É que quando a cobrança de lateral
acontece, são mais alguns centavinhos no bolso. Eu fico implorando, escondido
atrás daquelas placas de anúncio, para que a bola saia o mais rápido possível
para a lateral.
Quando assim ocorre, meu senhor, sei
que será um bom dia, porque é sinal de que o jogo será ruim, e não há nada que
um gandula não preze que um bom jogo ruim.
Entretanto, não pense que não gostamos
de uma bela partida de futebol, também gostamos dessas partidas grandes, cheias
de craques onde a bola só sai dos pés de um Garrincha, de um Pelé, de um Didi,
Vavá... Acontece é que se ganha mais dinheiro nessas partidas.
Se me permite um interpelo quanto ao
que eu disse sobre entender futebol através da vida é, que, como gandula a
gente descobre um pouco de sobrevivência porque convivemos com muitos ao nosso
redor enquanto trabalhamos.
O outro senhor que lhe dirigiu a
palavra esbravejante, nervoso e até um pouco exasperado, pode não parecer, mas
é um juiz, um árbitro de futebol.
Ele não podia concordar com tal
argumento quanto à largura do campo, pois, isso significaria que iria ter de
usar mais as pernas para correr e mais os olhos para enxergar. Seria
responsabilidade maior.
E, veja bem: as arquibancadas não
devem correr o risco de diminuírem com o plano maléfico que o senhor estava
assumindo, sabe por quê? Ele, como árbitro, depende da torcida que se instala
naquele local, a torcida também o alimenta. Por mais que seja capaz de tirar
tudo, igualmente.
Só que ganhamos apenas de quem nos
tira, não é, senhor?
Achei graça daquele desafortunado
homenzinho, coloquei-me de pé para ir embora. Antes disso, o jovem senhor me
chamou: cavalheiro, me faz um favor? Poderia chamar o garçom antes de sair?
Preciso pagá-lo
Respondi que sim, mas não sabia seu
nome para o identificar no balcão. Só que num súbito ato de adivinhação, o
pobre homem, assegurou: diz que é o gandula.
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