O Negro Lírico

 

Vinícius Júnior comemorando gol contra a Coréia do Sul Foto: Twitter

Alessandro Caldeira

Tivemos um grande jogo da nossa seleção. Ontem, a goleada não serviu só para nos redimir do vexame contra Camarões, mas também para exorcizar todo pessimismo que rondava em torno de cada brasileiro.

Antes do jogo muitos duvidavam de nossos jogadores como verdadeiros niilistas. Alguns, que se julgam poetas do nosso tempo, declararam aos quatro cantos: “vocês conhecerão a verdade!”, como se fossem o próprio Édipo.

A verdade, porém, é que o jogo contra a Coréia do Sul terminou em dez minutos. Não precisamos nem dos 90 para que todos soubessem que sairíamos classificados. Tanto é verdade que até o presidente da FIFA largou seu semblante sombrio, os xeiques abandonaram seus celulares e os brasileiros voltaram a sentir que a seleção jogava para o seu povo.

Cabe aqui dizer, aliás, como o Brasil vem sendo cada vez mais brasileiro desde o primeiro pontapé da Canarinho na Copa do Mundo. Dizem que os argentinos têm a melhor torcida, mas eis a verdade: só os brasileiros têm o corpo e a alma na Copa.

Entretanto, é conhecida a necessidade que o brasileiro tem em emprestar a sua torcida igual a um objeto desgastado. Antes do jogo contra os asiáticos ainda estávamos crispados de orgulho de outro país.

Diziam a torcida, com uma ênfase machadiana: “Mbappé é melhor que o Brasil”. Vejam bem que apenas um homem, um miserável homem conseguiu ser melhor que uma nação. Dirão vocês que o brasileiro gosta de vencer, mas respondo que o sentimento de vitória por outra seleção na Copa é tão falso que ninguém tem coragem de dar um pulo de alegria pela glória alheia.

Disse que o sentimento é falso, mas me retifico: a vitória da França, na verdade, foi falsa ao passo que a do Brasil foi um verdadeiro passeio que ninguém pôde questionar. Se muitos se surpreenderam com a vitória francesa, o que disseram ao mundo dos 4 a 1?

Sem poder questionar o placar, a TV britânica (sempre velha como o cenário de um filme de terror) tratou logo de desqualificar o Brasil dizendo que somos desrespeitosos quando comemoramos nossos gols, mas a verdade é que só nossos gols foram autênticos e, acima de tudo, solidários. Quantas vezes demos os passes para nossos companheiros? Todos os jogadores participaram da vitória brasileira, ou melhor: viveram a vitória. Porém, há de se concordar: toda a solidariedade só é verdadeira com imaginação e criatividade.

Esse dom, no entanto, apenas um alcançou: Vinícius Júnior. Cada toque na bola, cada corrida e cada movimento do seu corpo nos mostrava o óbvio: nosso atacante está encharcado de imaginação, e a sua criatividade estava à beira da loucura de um Dom Quixote. Tanto é verdade que foi preciso dois marcadores para tentar segurá-lo. Repito: “tentar”, pois a criatividade do brasileiro vai além de qualquer compreensão. Os movimentos de Vinícius foram tão desiguais, intensos e sobre humanos que um coreano dizia, efusivo: “marca o Vinícius”, mas o seu marcador não sabia se estava marcando um ou vários.

Vejam o seu gol, por exemplo, mesmo marcado por cinco, Vinícius achou uma brecha que mataria de inveja qualquer Zidane, qualquer Mbappé.

Já nos disse Nietzsche que o universo é infinito ao passo que os seus eventos possuem um número finito, que irá se repetir por toda a eternidade. O gol, portanto, nos fez viver ou reviver o futebol. A torcida rival se dava conta de que não pagou para assistir a Coréia do Sul, mas sim a Vinícius Júnior.

De repente, todos estavam crispados de desejo por uma jogada de nosso atacante. Nada mais importava. A croata nos estádios, as areias sagradas e o exército coreano se tornaram absurdos, obsoletos e sem qualquer sentido diante do jovem jogador.

No campo, Vinícius respondia com dribles como se obedecesse apenas à torcida na arquibancada. Não, nem isso. Vinícius só é capaz de obedecer a ele mesmo. Está claro, para mim, que os maiores males que enfrentamos têm a ver com a falta de respeito pelo nosso corpo.

Lembro-me, agora, de uma história e gostaria de compartilhar com vocês: na infância, vivia na casa de uma jovem, filha da amiga de minha mãe. Todos a consideravam estudiosa porque não saía do quarto. Essa jovem, porém, era um mistério para mim; gostaria de entender como uma pessoa conseguia se manter concentrada por tanto tempo ao ponto de não aparecer nem para tomar água. No auge da minha infância, meia hora de silêncio era como consultar a própria morte.

Pois bem, certo dia, ouço a notícia fatal: “ela morreu”. Segundo a mãe, no dia da sua morte, a jovem teria redobrado seu tempo de estudos até sofrer um colapso e espumar pela boca. Para muitos, o acontecimento é um mistério até hoje; outros, porém, lamentando ainda a sua morte, se queixam da fatalidade porque a jovem tinha muita vontade de estudar. No entanto, não passa pela cabeça de ninguém o óbvio: a nossa jovem não morreu por causa da sua vontade excessiva, mas sim pela vontade dos outros, que não paravam de dizer que ela era estudiosa, como se fosse a sua única qualidade, o seu único propósito ao passo de ter que morrer por ele.

Sei que me estendi e me desculpem por isso. Mas eis o que eu queria dizer: Vinícius Júnior não sofre da falta de vontade. Ao contrário. Nosso brasileiro é contra a produtividade: não quer ninguém decidindo as suas qualidades, seu propósito, mas fazê-los enxergarem o seu próprio corpo, a sua própria vontade e o seu dom.

Às vésperas da Copa do Mundo, Vinícius era xingado porque ofende os europeus com a sua graça, talento e imaginação. Os europeus perguntavam de si para si: como podemos nos humilhar desse jeito? O que o estrangeiro não entende é que desde os tempos de Flamengo o nosso atacante é um negro lírico da gafieira: joga futebol embalado por um samba lúdico que acontece dentro do seu corpo.

É assim que ele joga: dribla um, dribla dois, mais outro e sorri, mostrando a sua generosidade para com o marcador que não compreendeu muito bem os seus movimentos. Alguém deve ter pensado: “é como se não existisse”. Talvez. O atacante brasileiro não precisa existir aos olhares das pessoas ao seu redor. Basta um pequeno olhar, uma atenção por mais efêmera que seja e vamos enxergar a obviedade esmagadora: qualquer marcação para cima do nosso jovem é impotente.

Eis a verdade: o nosso ponta não só está nos redimindo, mas também está inspirando outros jovens a serem eles mesmos novamente. É só perguntar para qualquer um: “Qual a sua maior qualidade?”, que imitando a molecagem do seu ídolo, responderá: “sou eu mesmo”.