Divino Anjo Negro



Chegará o dia em que Vinícius Júnior não comparecerá em campo, bastando apenas fazer uma ligação simples para ele decidir o jogo pelo telefone. 





Alessandro Caldeira


Assim como Ayrton Senna precisou da corrida de Mônaco ou como David precisou de Golias, alguns jogadores clamam por uma partida em especial para serem, enfim, reconhecidos. 


Vejam bem: reconhecidos, porque provavelmente tais jogadores já foram citados em outros momentos em diferentes contextos. A lembrança deles, porém, insiste em ser compreendida de maneira distinta dependendo do Estado onde o público mora. É como, por exemplo, falar ao manauara que você quer uma faca para schimiar o pão. 


Escrevi isso e imediatamente tomei uma dose de consciência: é impossível falar apenas de um jogador, é preciso falar de dois. Sim, dois! Seria completamente irresponsável se eu esquecesse ou, pior, deixasse de lado um em detrimento do outro uma vez que só neste mês pudemos ver dois milagres surgindo


Você deve se perguntar quem são os dois jogadores misteriosos de que falo tanto, mas é estranho que para mim não há nenhum segredo. Não há maior brilho do que as luzes trêmulas de Vinícius Júnior e do menino Estevão dentro de campo. Talvez um seja mais conhecido do que outro, certamente, mas em tempos midiáticos é comum que o menino que nasceu ontem já seja tão jogador de futebol quanto o craque mais famoso. 


Talvez o torcedor mais entendido não compreenda, com razão, o que estou dizendo. Mas explico: tanto o nome de Vinicius Júnior quanto de Estevão ainda sofrem certa resistência como se fosse um tabu, um pecado. No Brasil ainda existe quem conteste o craque negro. Digo, decerto, com exagero de que o camisa sete, por exemplo, tem ares de Joana D’arc e só não é queimado na fogueira por que a praça pública, agora, é ocupada por outros pesadelos. 

 

Durante o jogo contra os alemães, mesmo quando fez o primeiro gol, ainda não acreditavam em Vinícius Júnior. Aqui, confesso, no entanto, que eu também não acreditei. Mesmo que um soldado me emprestasse os olhos da Santa, ainda duvidava do seu gol porque sou um realista inveterado: não consigo acreditar em previsões. 


Imagino que ele tenha entrado em campo não como um jogador e nem como gente. Afinal, quem faz dois gols precisa estar deslumbrado por uma euforia divina. Sim, amigos, o primeiro gol do brasileiro só poderia ser realizado por um mártir. 


Mas o segundo e último gol de pênalti foi como se quisesse provar para todos que estavam o assistindo que também é feito de carne e osso e, assim, obrigou o mundo a acreditar em suas ações. À medida em que se alguém dissesse que o último gol de Vinicius foi de bicicleta qualquer um admitiria: “sim, foi de bicicleta”, sem nenhum espanto. Minto. Há o espanto. Posso dizer, inclusive, que se não fosse pelo menino de São Gonçalo o Brasil não se espantaria. 


Mas na partida final ainda duvidavam de Vinicius Junior. Alguns, fingindo ser profetas, enumeravam os erros do camisa 7 e exaltavam a partida digna do zagueiro alemão. Mas, amigos, os profetas só falam o óbvio e esqueceram de avisar que toda tragédia sempre escolhe os heróis imperfeitos. 


Por causa de Vinicius, o jogo virou um verdadeiro espetáculo tragicômico shakespeariano durante todo o 2º tempo. Mas, dessa vez, não por causa do zagueiro, mas pelo goleiro alemão Neuer que fez de tudo para ser tão Santo quanto o atacante brasileiro. Sua missão era apenas uma: fazer o craque perder a sua fé. 


Neuer estava a ponto de acreditar na sua superação. No entanto, mal percebeu ele que estava frente a uma experiência bíblica. 


O Real Madrid só pôde acreditar na vitória depois de um chute mal batido de Vinicius Junior. Os acácios do Twitter dirão que o mérito foi do atacante espanhol em empurrar a bola pro gol, mas nada como um chute mal batido para que o milagre aconteça. 


Como podemos exigir de um craque, seja ele um delinquente ou um Santo, que tenha tamanha cerimônia e polidez no seu jogo enquanto se está indignado com a derrota parcial de seu time como se fosse a testemunha de um assassinato? 


Sim, amigos, quando assistimos a uma partida de futebol não queremos apenas ver o gol, acompanhar a bola com os olhos enquanto o corpo está imóvel, pelo contrário; acompanhamos a uma batalha dentro de campo porque precisamos contemplar o drama, a tragédia e a compaixão do ser humano.   


Há quem diga, numa obsessão pela falta de fé, que se não fosse pelo camisa sete o jogo teria terminado 2 x 0 para os alemães, mas quem discorda? Se não fosse pelo nosso negro lírico o Real Madrid deixaria de existir. Seria, agora, um time abatido esperando o próximo jogo para ser dizimado. 


Mas Vinícius Júnior existe e, se caso, ainda houver dúvidas, o craque brasileiro deixou suas testemunhas pelo campo como, por exemplo, o zagueiro Kim, que foi devastado pelo brasileiro e saiu dizendo após o jogo: hoje eu vi Vinicius Junior. 


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