Por:
Alessandro Caldeira
O
interesse desmedido pela vitória deixou o brasileiro alheio à
tradição da gestualidade corporal na cultura do País. Certa
vez, numa quadra escolar onde amigos organizavam as “peladas”
todas segundas-feiras, o garoto que mais gostava de driblar recebeu
uma advertência de seu companheiro de equipe: “Não faça muita
firula”. Assim que acabou o jogo, o garoto comentou perto de mim:
“Eu não sei jogar bola”, convencido de que seu estilo de jogo
era errado.
Ao mesmo instante, senti como se alguém tivesse tirado o sonho daquele garoto, como um mágico limitado na criação de truques menos ilusórios. No entanto, quem via o pequeno franzino jogar, logo se sentia diferente perto dele. Em outras palavras, era como se o público obtivesse uma nova descoberta quando a bola grudava nos pés daquele garoto. Os comentários de quem o assistia eram os melhores possíveis: “Esse garoto tem talento”. “Não dê muito espaço, senão já viu! ”. “Ele não fica nervoso na frente de marcador algum”.
A
expectativa que a “torcida” gerava em cada toque na bola daqueles
pés pequenos e magros o transformava em uma “celebridade”, o
público notava-o, aquele era o momento em que ele podia interagir
com outras pessoas e tornar-se conhecido sem precisar falar, porque é
esse o objetivo do futebol: a conectividade social entre aqueles que
estão presenciando o jogo, dentro e fora da quadra.
Mas, de repente, após aquele comentário que veio como uma faca em seus pés, o futebol do menino sumiu junto com a vontade de ser notado através de seu talento. Assim, o garoto se viu pisando em uma “terra estrangeira”, deslocado em um espaço que não comportava seus sonhos.
Entre
os brasileiros, o drible virou uma espécie de ritual profano, uma
dança Lundu. Parafraseando Nelson Rodrigues: Brasileiro é menos
brasileiro no Brasil. E a cena ocorrida naquela quadra fez-me
imaginar o peso daquele garoto em se sentir culpado por apreciar o
lúdico, o imaginativo, ou seja, por conservar o estilo brasileiro.
Se
Garrincha, Pelé e Rivelino tivessem no futebol de hoje, eles teriam
se aposentado sem ter dado um drible sequer na vida, impedidos de
exercerem sua arte por excelência por terem que ceder à obediência
da “ciência-tática”.
Porém,
não é novidade entre os “cientificistas da bola” a concordância
de que o futebol evoluiu e por isso não tem drible, ou de que o
futebol precisa ser mais competitivo, negando o drible como recurso
que leva à vitória.
Mas
eu contra-argumento dizendo que, na verdade, o futebol não evoluiu,
nós é que perdemos a essência do jogo brasileiro porque não
entendemos nada da nossa cultura, substância que se manifesta dentro
e extracampo, e que valoriza a nossa tradição lúdica.
É
mais fácil ver o brasileiro sair de seu País de origem e virar um
alemão, espanhol ou inglês relatando uma certa “cultura
futebolística” que aprendeu no exterior como se fosse ensinar aos
brasileiros um esporte novo.
O
último jogo da Seleção Brasileira, por exemplo, contra a Rep.
Tcheca, surgiu um comentário criticando a forma como o Brasil está
se preocupando demais com a tática, justificando que esse era o
principal motivo pelos jogadores do País não terem mais a
capacidade de driblar.
Não
demorou muito para os cientificistas da bola estufarem o peito e
refutarem a opinião dizendo que o brasileiro não pode ser mais
individualista porque o futebol mudou.
Porém,
a impressão que eu tenho é de que o futebol não mudou, mas a forma
como queremos interpretar o jogo brasileiro sem entendermos a cultura
do nosso país e as influências que dela decorrem.
Tomemos
o Carnaval como exemplo: imaginem um carnaval sem dança, sem todo
seu processo lúdico e, assim, limitando suas gestualidades
corporais, o que aconteceria de imediato? O público jamais teria a
capacidade de interagir com aquilo que está acontecendo porque
perderia a capacidade de sonhar em conquistar o mundo dançando.
A
mesma coisa é o futebol brasileiro: o jogador precisa ter espaço
para desfilar suas gestualidades para que não só ele, mas também o
público sinta prazer em estar participando. Sem isso, o jogador
perde a sua força e seu talento, desconexo com o público e
abandonado dentro de si.
É
o drible do jogador brasileiro que resulta na sua interação com o
torcedor. É a despretensão do jogador que desperta a aproximação
com as suas origens e o faz renascer de uma vida outrora
desconhecida.
Em
suma, cada jogador é um garoto impedido de driblar porque a
competitividade e a vontade de apenas passar a bola para ganhar,
respeitando a mãe-tática, é tão mais forte quanto a nossa
vergonha por termos uma cultura.
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